Afinal, o Que é Acessibilidade?
Infelizmente, nada disso tem relação alguma com acessibilidade, ao menos por enquanto. Nós, que julgamos entender alguma coisa de acessibilidade (felizmente esse grupo está crescendo), falamos nos direitos de igualdade, cidadania e independência de velhinhos, grávidas, deficientes e pessoas que usam dispositivos esdrúxulos, ou se encontram em ambientes diferentes; falamos em leis, diretrizes e padrões nacionais e internacionais. Os mais aplicados dentre nós estudam usabilidade, Universal Design
, padrões Web
, WCAG
, DAISY
, normas ANSI
, NISO
, ISO
, ABNT... Quando focamos nos resultados, falamos na ampliação do universo de clientes e usuários, que pode ser alcançada com a conquista desta grande fatia de mercado, formada por toda essa gente diferente.
Como vemos, em todos estes enfoques, a acessibilidade aparece como algo que tem a ver com pessoas que têm alguma deficiência ou necessidade especial. Mas será que acessibilidade é mesmo "só" isso?
Definições como a de "Ajudas técnicas" pressupõem uma clara separação das pessoas entre deficientes e não deficientes. Mas, na prática, como é que se faz esta separação?
Por exemplo, mesmo que uma pessoa seja totalmente cega de um dos olhos, se tiver visão "normal" no outro olho, não será considerada uma pessoa com baixa visão e não terá direito às ajudas e benefícios concedidos às pessoas com deficiências, pois, da maneira como nossa sociedade está organizada, esta pessoa continua podendo usar a visão para realizar atividades essenciais, tais como ler e se locomover. Imagino que, se a nossa principal atividade fosse a caça, talvez essa pessoa tivesse que ser considerada deficiente. Por outro lado, se as nossas placas e livros fossem escritos com letras maiores, menos pessoas seriam classificadas como deficientes visuais.
Quero dizer com isto que a deficiência e o seu grau de severidade dependem das atividades e dos recursos disponíveis em cada cultura. Os testes para avaliar uma deficiência visual, por exemplo, consideram o melhor olho, após a aplicação da melhor correção optica possível.
é por isso que a CIF
sabiamente diferencia os conceitos de "desvantagem" (handcap), "incapacidade" (disability) e "deficiência" (impairement), já que uma deficiência pode ou não causar uma incapacidade (dependendo do indivíduo e dos recursos disponíveis) e uma incapacidade pode ou não causar uma desvantagem (dependendo do contexto social). Por exemplo, uma pessoa que não tem uma das mãos (deficiência), dependendo de características individuais e dos recursos disponíveis, pode ter dificuldade ou não conseguir realizar tarefas da vida diária (incapacidade) e, dependendo do contexto social, pode ter dificuldade para encontrar um emprego (desvantagem). Quando desconsideramos esta perspectiva, saímos por aí rotulando as pessoas, como se o problema estivesse nelas e não na sua interação com o meio em que vivem.
Estamos criando um mundo extremamente hostil a uma grande quantidade de pessoas, porque elas não se encaixam em determinados padrões. E então saímos rotulando gente e tentando criar mecanismos compensatórios, para tentar consertar o que já começou errado; sem falar naqueles indivíduos desajustados que ficam sem "rótulo", por falta de sensibilidade humana e competência diagnóstica.
Como disse certa vez uma grande amiga (que não é deficiente), acerca da minha deficiência visual: "Você, pelo menos, tem uma deficiência que está aparente e, portanto, pode lutar para que ela seja respeitada e levada em consideração; porém, o que fazer, quando a gente tem alguma incapacidade que gera uma dificuldade para lidar com as coisas deste mundo, se esta dificuldade não tem um diagnóstico e não está aparente?"
Quando será que vamos parar de segregar as pessoas desta maneira, num total desrespeito às suas peculiaridades, necessidades e potencialidades individuais?
VII - Acessibilidade para Todos
Todos temos limitações visuais (ou não precisaríamos de lunetas, microscópios e telescópios), limitações auditivas (ou não teríamos amplificadores e estetoscópios), limitações da fala (ou dispensaríamos tradutores e intérpretes), limitações da locomoção (ou não existiriam carros, navios e aviões), limitações da motricidade (ou não inventaríamos ferramentas com cabos compridos, extensores, ganchos, prendedores, acionadores, dispositivos de segurança), limitações de comportamento (ou não haveriam atenuantes legais para crimes realizados em situações de stress ou de forte impacto emocional).
No dia em que cada ser humano tiver a exata noção da magnitude das suas próprias limitações, a nossa especialidade deixará de existir. Neste dia, quando alguém falar em acessibilidade, ninguém mais vai pensar num monte de gente esquisita, vivendo de maneira excêntrica. Acessibilidade fará parte do currículo de todas as profissões, será coisa do dia-a-dia de todas as pessoas e especialistas em acessibilidade e usabilidade seremos todos!
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